Amontoada de cartazes e garrafas vazias, meu cômodo é aquilo que se pode esperar de um frescor adequado para o meu momento distraído, numa estranha inadequação. Aliás, eu até tragaria um cigarro agora, para dar um ar mais distraído. Atravesso de novo e de novo aquela velha avenida, vou ouvir um rock brega naquele bar de sempre, invento o meu segredo. Ele chama o garçom, pede mais uma rodada e eu me disperso na curiosidade de saber onde aquilo vai dar. Na minha já aceita condição de “outra”, concordo ficar mais um pouco, já não tenho receio nem uma gota de dignidade. Se meu julgamento final for dentro da minha cabeça, estou eternamente condenada. A fraqueza não me deixa reagir e eu recaio aonde quer que os braços dele apontem, isso é verdade. Invento desculpas pra mim e pra ele de porque eu não vou embora, minto que preferia estar em qualquer outro lugar. Atenho-me a necessidade de dizer o que não deve ser em alguma hipótese dito, não por mero pudor, mas por aquilo tudo já ser um assunto morto enterrado e que ninguém ali iria dançar depois da música já ter terminado. Enquanto isso, ele tenta descobrir meus segredos, por que razões não sei. Pode ser por verdadeiro interesse em desvendar essa minha alma que erra em sentir ou apenas para me ganhar com seus falsos encantos e ter alguém para esquentar sua cama hoje à noite. Claro que ele pode escolher algumas amandas ou letícias por aí, e a dúvida é que me prende àquela cadeira em sua frente enquanto ele conta qualquer história sem valor e enche sem medo meu copo de mais vinho. Estou um pouco ébria e sei que meu segredo é mentir desesperadamente que não gosto dele. Como se não aliviasse um pouco o peso do mundo estar ali desfrutando daquela companhia, como se minha vontade não fosse de que ele surpreendesse com qualquer gesto brusco que me tirasse o fôlego. Gosto do jeito dele ignorar o celular tocando, mas sei quem o procura e isso me traz de volta a realidade. Estou tomando proveito de rédeas alheias em que não posso controlar. Será o vinho? E me aborreço por vício. Congelo de ciúmes e a primeira reação é o silêncio. Depois a súbita ameaça de ir embora. A minha insegurança o faz rir e dizer que não passo de uma menina boba. Não passo de uma menina boba, angustiada, de punho e mãos fracas que não sabe tocar seu coração nem desatar seus nós. A história se repete. Uma semana sendo amante de meninas, mulheres, amando-as, despenteando cabelos e sentimentos. Toda essa voracidade vem parar sempre no mesmo porto. Uma sexta-feira cinzenta, com uma estranha conhecida, que pensa que conhece, mas não a vê. Uma noite de música velha e vapores de bebidas baratas, caminhadas ao vento frio noturno sob calçadas enlameadas de fumo, resquício de chuva e buracos. Ele canta uma canção que me toca e envolve. Uma canção que quase me faz acreditar e aceitar que o amo, mesmo em toda informalidade existente ali naquele pequeno espaço entre nós dois. De repente sou tomada pela esquisita satisfação de estar onde queria estar. Ele me tocando, eu acoberta de um abraço que me dá a sensação de ser de verdade, aquilo, aquela confusão. Fui seduzida de novo para aquela ratoeira e me deixo enganar. Estou esperando a qualquer momento uma renúncia, mas ele não me machuca, ele continua me fazendo crer naquela realidade inventada. Permanece me suportando, não recusa o abraço. Eu sinto uma febre, medo e me vejo apática. Ele finge que acredita, mas não solta, não alivia essa corda envolta do meu pescoço e demonstra indisposto a me deixar ir. Dessa vez sou eu que finjo que acredito. Sorrio meio exagerada, o álcool e todo o resto já me subiu a cabeça. Vou embora, esqueço o celular desligado dentro da bolsa, perco as chaves de casa, abandono a cidade e percebo que não queria te deixar sem antes te dizer tudo isso. Que nem eu sei. Encontro ele vazio, olhar distante na janela do meu quarto. A batida violenta da porta deve tê-lo chamado atenção, pois ele se virou pra mim ao mesmo que eu encarava o chão numa tensão, uma exustão imensa. A indecisão de não saber se queria sair fugindo daquele inverno que se fez no meu cômodo ou de ficar e vê-lo incendiar o que ainda me sobrava, amansar uma antiga fera com beijos enternecidos. Eu não queria estar em outro lugar, imagino o final daquela noite em complacente perfeição e tomo a última taça de vinho num gole só. O peixe morre pela boca.
