sábado, 4 de agosto de 2012

O último feixe de luz

Foi nesse início de Agosto que o tempo pareceu parar. Só que os segundos, minutos, horas, dias, semanas, no meu relógio de pilha fraca, no calendário de papel gasto preso na geladeira vazia da casa deserta, o tempo, não parava nunca de passar. Dentro da gaveta havia uma carta para Ana que jamais enviei. Um clichê inegável, faltava o pairar para a janela e ver a chuva caindo, mas não chovia fazia meses, o sol lá fora inundava o quarto de uma melancolia característica, o calor efervescente não combinava a frieza do momento nem à minha escolhida solidão em que tirei duma caixa de preferências para me ajudar a atravessar Agosto. Abri a gaveta para ler mais uma vez minhas palavras mal encaixadas dentro de uma parte daquilo que eu queria dizer. 

“Ana, 

eu não tenho artimanhas para me dirigir a algo que eu sequer sabia que tinha. Não, eu nunca tive e eu dizia. Parece que em voz alta tudo fica ou é mais real. Mas eu ando abafando entre as paredes desse quarto, abafando tanto, entre o refúgio que achei debaixo dos lençóis, dentro de tudo que eu queria dizer, mas que foge inexplicável ou se transforma ou se materializa em forma de decepção exacerbada, de esforço não reconhecido, em cansaço de sempre viver de metades, talvez eu tenha tido essa dificuldade em aceitar – que você pode chamar de coragem – e deixar pra lá, porque comigo sempre foi tudo ou foi nada, desisti dos seus meios termos e assumi a posição de nada na sua vida. Aceitei. Hoje parado sem muito o que fazer eu só posso dizer que sinto muito por você sentir tão pouco, pouco o suficiente para não preencher as lacunas que eu imaginava precisarem de você e da confiança que eu precisava depositar mas que você não foi capaz de conquistar. Não estou sendo ingrato, eu posso ter um dia confiado, posso em vários momentos, esses que a saudade chega a doer forte e lá no fundo, ter te feito peça essencial na minha vida, mas palavras, minha querida, palavras valem apenas no momento que são ditas e você escolheu a hora errada para dizê-las, mas quem sabe era tudo que eu precisava ouvir para me despertar e dar esse passo importantíssimo: parar o quanto antes. Eu não queria chegar a essa conclusão, me recusava, era mais do que eu, naquele momento, podia suportar, só que a verdade é, sobretudo, inegável, você se concretizou, você é indiferente a minha falta e capaz de sustentar uma vida toda nas costas do orgulho e dos seus parâmetros, Sua Base. Meu melhor amigo agora é um autor de livros tristes, porque perdi a quem procurar nesses dias chuvosos dentro da gente. E eu precisava. Te dizer que fingir que não estou nem aí pra você foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. Que me apunhala nas costas a dúvida, aquela que não me deixa ou não quer que eu acredite que você se foi pra valer ou se está enfrentando o mesmo dilema ou. E que não, eu não conseguiria. Encarar outra vez seus olhos de uma inocência fingida, de acusações pelos meus erros, sobrecaindo em mim toda a culpa do mundo. Encará-los não passa de uma vontade acovardada, medo de ser o primeiro a dizer, ou pior, o único a dizer." 

Ventava forte no parque. Atravessei distraído aqueles campos de girassóis abertos, pareciam satisfeitos com a intensidade do sol naquela tarde triste de sábado. Eu não saía de casa havia um bom tempo, eu não arriscava abandonar o sofá, os discos, cigarros e vodca, o cachorro velho, o cactus que deixei morrer. A claridade ali meio que me assombrava. Num banco logo a minha frente estava Ana. Ela não parecia ter reparado em mim ou simplesmente ignorava ou devia pensar que era apenas um desconhecido passando e na realidade eu era. Mas eu não me intimidei como de costume, fiquei parado olhando, suas faces relaxadas, estava bem, entregue a uma paz que não, eu não compartilhava. Tinha flores na mão, mas não eram girassóis, outros tipos de flores que eu não soube reconhecer. Na outra mão, eu também não tinha certeza, segurava firmemente o conforto dos seus sonhos, o que sempre desejou num mundinho que era só seu e que eu percebi, não havia mais espaço pra mim. E quando eu acenei, incontido, esperei que ela virasse, mas ela não virou. Quando chamei seu nome, esperei que ela olhasse, mas ela não olhou. Continuei esperando que ela sorrisse e corresse para me abraçar, mas ela não me via, não virava, não sorria, sorriso costumeiro, não corria em minha direção.