Outro dia percebi que não acordei de mau humor. Foi
frustrante pra mim notar isso. Como boa dramaturga da minha própria vida, fiz
uma breve reflexão. Estaria eu perdendo minha identidade? Dei bom dia – mesmo que
alguns não respondam, danem-se eles, isso não vem ao caso, em outro texto,
talvez – pensei naquela manhã no mendigo que vi no caminho pra aula e fiquei
sofrendo com aquilo e ainda ofereci um Guaraná Jesus pra minha professora
preferida de biologia. Voltei um pouco no tempo e cheguei à conclusão que
perder minha identidade talvez seja a melhor coisa que tem me acontecido.
Pensei não só em um pobre coitado pairando ali diante das
suas impossibilidades, dos seus prováveis medos. Pensei também na falta de
esperança, a que ele tinha ali como uma sombra que o perseguia em todo canto,
sem destino, sem rumo e sem bagagem. O contraste que eu senti entre mim e todos
que estão em situação tão miserável foi tão grande que não me coube, e o meu
modo mais patético de transbordar isso foi fazendo uma redação, porque é a
única coisa que estou apta a fazer por enquanto, e nem é tão bem.
Tudo chegou a um ponto que os mesmos que se dizem humanos,
perderam a noção do que é humanidade. Ou será que eu que fiquei presa em algum
momento da história em que as pessoas cuidavam umas às outras? Ou isso nunca
aconteceu e é só mais uma utopia criada na minha mente cheia de façanhas?
Hoje quando um professor de literatura perguntou casualmente
quem sofria quando via alguém pedindo esmola no semáforo e todos (ou pelo menos
uma maioria gritante) responderam que não, eu sofri foi com a resposta. O
professor, provavelmente em razão de sua profissão que já exige dele ser um
personagem fictício das leituras que ele nos passa, demonstrou completa
indignação. Gostei dele um pouquinho mais depois disso, mesmo tendo
desconfiança que aquilo talvez fosse uma farsa, mas adoro invenção, gosto de
tudo que parece minimamente irreal. Sim, sou uma lástima, descontroladamente
atraída pelo que não existe, porque a realidade, como eu já disse, me
amedronta. O velhinho na rua me deixou estarrecida. Ao mesmo que me deu uma
sensação (única?) de que as pessoas não se comovem com nada que vá mais além do
seu próprio umbigo. Então, você vira pra mim e pergunta, mas cadê a novidade
nisso? O meu descontentamento é justo esse, oras. Onde está o espírito
solidário, o desejo de fazer o bem e o mais importante: a coragem para
desenvolver alguma mudança?
Dá até um desgosto viver num mundo assim tão desequilibrado.
Dá também a impressão que você não pertence a esse planeta porque tudo o que
você faz é se importar. Mas quem nunca se sentiu um ser mutante em meio a tanta
gente estranha? Acontece que se você não remar o barco, corre o risco de ser
engolido pela onda. E eu não tenho tentado nadar contra a maré. Estou tentando
melhorar minha imutabilidade (leia-se: deixar de ser cabeça dura) e como diria
meu amigo Charlie, “participar”. Conhecer pessoas diferentes, apesar da
essência totalmente leviana, é revigorador. Se pode tirar algo do comum, não dá
pra ser um extraterrestre bitolado unicamente em sua própria concepção de vida pra sempre ou como eu
mesma tenho ouvido ultimamente “ser trancada nesse mundinho de sonhos”. De
jeito nenhum estou abrindo mão do meu mundinho de sonhos, ele é meu e ninguém
me tira. Mas de fato, amadurecer a ideia de que há um presente e que ele está
acontecendo agora, não faz mal a ninguém. Meu avô disse que precisamos ser
camaleões que sempre se adaptam ao ambiente. Pois bem, sou um camaleão.
Tudo bem que ainda sou – um pouquinho – estranha, mas quem
não é? Todos têm suas particularidades, todo mundo é meio pirado em algum
aspecto ou em vários deles. E nesse tipo de assunto sou extremamente
observadora. Adoro fazer watching people em todo canto que vou. Constato que as
pessoas são sim especiais, independentemente da superficialidade que algumas
delas carregam. Eu mesma já fui o maior peso pesado que poderia ter suportado.
Hoje não ligo as pessoas me olharem torto por adorar astrologia, mitologia
grega e poesia, ou quando falo que sou fã das estrelas e paro sim para
admirá-las, ou quando as vezes saio apressada porque me dá um insight e eu
preciso correr desesperada atrás de um papel e um caneta ou quando falo coisas
esquisitas que ninguém compreende. Não tenho culpa se as pessoas não entendem
mais a língua dos sonhadores.
E se te acharem
esquisito, te chamarem de louco e o mundo te virar as costas, lembre-se que
existem vários outros paralelos para se inventar.


